Memória


Memorial da caminhada às Aldeias da Tribo Xucuru, em Pesqueira – PE, realizada nos dias 05 a 07 de maio de 2006.


Rosália Cristina
3º período da Graduação Plena em Letras
Membro do Grupo do Caminho
Membro do Grupo Missão de Férias





Penso que cumprir a vida seja simplesmente
Compreender a marcha e ir tocando em frente
Como um velho boiadeiro levando a boiada,
Eu vou tocando os dias pela longa estrada, eu vou.
Estrada eu sou.
Todo mundo ama um dia, todo mundo chora,
Um dia a gente chega, no outro vai embora.
Cada um de nós compõe a sua história,
E cada ser em si, carrega o dom de ser capaz,
De ser feliz.
                                                 (Renato Teixeira / Almir Sater)


            Em tudo amar e servir, para no tudo amar e sentir. Amar a graça da promessa a ser cumprida e perceber o real sentido da caminhada. Foi com esse sentimento que antigos e novos participantes do Grupo do Caminho partiram da UNICAP, na noite da sexta-feira, para revisitarem a aldeia dos índios Xucurus. Abençoados pelos ideais dos quatro padres jesuítas: Inácio de Loyola, Pedro Fabro, Francisco Xavier e Pedro Arrupe.
            O primeiro chamamento à nossa percepção e interação nos veio em forma de fitas, de quatro cores diferentes, que colocadas em nossos braços, dava-nos a tarefa inicial: observar o interior de cada um de nós; observar o exterior – aquilo que nos cerca -; ouvir, colhendo dessa audição o aprendizado necessário aos futuros passos; e, finalmente, ter a sensibilidade de criar um elo entre os novos e os antigos caminhantes.
            A primeira acolhida, Seminário São José, chegou-nos rápida. Um pouco antes, no ônibus, ouviam-se risos, estórias, considerações filosóficas e teológicas; faziam-se planos para comemorar os cinco anos do Grupo do Caminho; sentia-se a expectativa entre as falas de quem já foi à aldeia e de quem ainda não tinha ido; cantavam-se sambas antigos ou, simplesmente, dormia-se. Assim, com tantas interações, logo chegamos ao seminário no qual pudemos, um pouco, repousar. Ao amanhecer, chegamos à entrada da Serra do Ororubá.
            “Descreva a natureza”, disse-me uma amiga. “Sinta-a, antes que eu descreva”, disse-lhe eu. Na proposta do sentir, seguimos, em caminhada, ao local da mata onde está enterrado o Cacique Chicão, lugar sagrado para aquele povo. As rochas, umedecidas pelos fios de água que delas minavam, tornavam a terra úmida ou com estreitos córregos, entre pedras, que, embora dificultassem nossos passos, iam abençoando o nosso caminho.
            Paro para uma reflexão: ser do Grupo do Caminho é perceber as bênçãos que ele, o caminho, nos propõe. É colher não só as frutas que surgem, mas colher o sol, os animais, as flores, as pessoas, a cultura local. É, sobretudo, recolher-se. Perceber-se. Encontrar-se. E desse encontro, doar-se. Só aí, não simplesmente cantaremos “em tudo amar e servir” (da oração de Santo Inácio de Loyola), mas compreenderemos a real significação desse verso e, verdadeiramente, teremos feito uma CAMINHADA. Pois perceberemos que quer sejam os córregos, de água ou de lágrimas, entenderemos o caminho proposto. Nossos passos, valendo-nos o mérito das lembranças, eram ora lentos, ora corridos; ora ofegantes, ora pausados; ora em grupos, ora isolados; ora barulhentos, ora silenciosos... sempre entre contrastes, os caminhos mostravam-nos sua razão de ser.

Oh! Tupi, Tupi, Tupi!
Oh! Tupi, Tupinambá!
Eu quero a força de Tupã,
Eu quero ver Tupinambá!
           (Cântico no Toré, ritual religioso indígena)



Chegamos a Cimbres, ao meio-dia do sábado. Naquela mesma tarde, assistimos a um Toré, ritual religioso indígena que nos chamou vivamente a atenção. Os cânticos, de fácil memorização, permitiam-nos “senti-los”; a roda, a dança, o som, as palmas, as imagens das pessoas, tudo prendia os nossos sentidos. O Toré, sem a necessidade dos passos, foi para cada um de nós mais um caminho. Buscávamos compreensão e noção de fatos e feitos.
Ao voltarmos para a cidade, fizemos um momento de oração na Igreja de Nossa Senhora das Montanhas. Nem todos foram. A maioria ficou na casa (a nossa casa). Foi um momento rico de encontro com Deus e de agradecimento pelo que Ele nos estava oferecendo. Ainda que, adiante, não entendamos Seus meios, um aprendizado deve ser colhido até de uma dor. Esse é o caminho que nos foi dado dessa vez.
A noite, não diferente da outra viagem que havíamos feito, foi festiva e longa. A alegria dos caminhantes era presente, contagiante. Poucos foram os que, pelo cansaço, se recolheram. Foi no aconchego do recolhimento que o domingo surgiu para cada um de nós.
Logo ao amanhecer, alguns caminhantes foram ao povoado de Cajueiro, conhecer a imagem de Nossa Senhora das Graças, posta à visitação no alto de um monte. Tivemos que subir e descer ladeiras e escadas, mas a companhia de algumas crianças, contando-nos suas estórias e nos mostrando peculiaridades daquele local, reconfortava-nos e fazia com que déssemos os passos seguintes e cumprir o caminho. Chegamos cansadíssimos ao pé da imagem santa, mas a beleza do lugar reconfortava-nos. Como atender a minha amiga e descrever a natureza? Não, para o tudo que vimos não há descrição que o complete. Descrever cascatas? Coqueiros? Montes? Distância entre o ponto de partida e o de chegada? A pedra, com uma área seca, onde houve a aparição da santa, mesmo estando toda pedra, úmida? Volto a escritos passados e repito que SÓ VIVENCIANDO PARA MELHOR COMPREENDER.
Voltamos a casa e fizemos uma reunião avaliativa da viagem, como sempre costumamos fazer. Reunimo-nos no primeiro quarto e, durante a conversação, colhemos ideias, valores e sentimentos do grupo. Após a reunião, tivemos uma hora livre para conhecer a cidade ou descansar. Alguns rapazes dirigiram-se ao campo e ficaram jogando bola, um grupo foi à igreja, outro ficou na casa se organizando para viagem, pois partiríamos às 13 horas; um último grupo foi ver o açude.
Nas últimas horas daquela manhã, o caminho seguiu trilhas tortuosas e torturantes. Testou-nos, no mais elevado grau, os nossos passos. Forçou-nos a refletir o sentido daquela caminhada. Um amigo, colega, conhecido, um caminhante, enfim, seguiu um caminho pelo qual não pudemos acompanhá-lo. Deixou-nos, naquele açude de água escura e fria, tão escura e fria quanto à morte que naquele momento o convidara a partir. O desespero tomou o grupo. A crença de que ele apareceria sorrindo, perguntando o que está acontecendo, era um ilusório suporte de dor.
A volta, dentro do ônibus, foi sem cânticos. Tensa. Quase que silenciosa. Uma salva de palmas ao caminhante que ficou foi o que nossos corpos puderam fazer. Telefonemas e informações, vindos de Cimbres, tiraram-nos a esperançosa ilusão: a caminhada estava, realmente, com um caminhante a menos. Chegamos à UNICAP às 18h30min, daquele domingo, e fomos diretamente à missa pelo caminhante que ficara. De maneira inédita, a caminhada não terminou naquele domingo. Na segunda-feira, caminhamos ao Cemitério de Santo Amaro, no Recife, para despedirmos daquele que, em diversos momentos, presenteou o grupo com sua alegria.
A caneta demorou a escrever esse Memorial. E não sabe como findá-lo. É que caminhos diferentes sempre dão mais trabalho de seguir. Com a lágrima na face, encerro com um pensamento:

A DOR, NA ESCOLARIDADE DA TERRA, É A INSTITUIÇÃO DA DISCIPLINA, DO AUTOCONHECIMENTO, DO APRENDIZADO E DA CONSTRUÇÃO DO CARÁTER.

O GRUPO DO CAMINHO CRESCEU COM A SUA BREVE PRESENÇA, MARCOS.