Caminho Xucuru


UMA PEREGRINAÇÃO XUCURUANA

Memorial da Viagem realizada de
15 a 17/04/2005 pelo Grupo do Caminho - UNICAP

O ENLACE

         Tudo começa com uma idéia, que gera uma proposta, resulta em um convite e, finalmente, o fato: IR À ALDEIA XUCURU COM OS ALUNOS. Mas como? Quando? Quantos irão? O que fazer...? Tudo vem ao seu tempo. Talvez Tamain e Tupã já soubessem de todas essas respostas. Contudo, é preciso vivê-las para senti-las e se aprazerar com o resultado de cada uma. Temores e tremores vêm para dissipar a idéia e anular a proposta. É aí que começa a peregrinação. O importante é não deixar fazer o limite do outro ser um obstáculo para o seu limite.
         Com os abalos internos resolvidos, eis a hora do convite. Poucos o aceitam... temores e tremores que já não abalam essa construção. E por assim ser, alunos da Universidade Católica de Pernambuco se predispõem a seguir viagem rumo à Aldeia da Tribo Xucuru, em Pesqueira.
         A noite da viagem chega, ansiosa, curiosa, agitada, rica, sorridente... em momentos, apreensiva; noutros receptiva, solidária, Cristã sobretudo. Pessoas que se conhecem começam a prima interação com pessoas desconhecidas.  Unidades deixam de ser para se firmarem em grupos; grupos crescem e mais tarde... Perdoe-me, caro(a) leitor(a), mas prefiro deixar a cargo deste memorial e de sua leitura reflexiva, o que está inserido nessas reticências.
         Após vários registros fotográficos e filmagens, após orações em louvor a todos os peregrinos que ali estavam e aos alimentos arrecadados em prol das famílias Xucurus, o ônibus saiu com o grupo rumo ao destino. Mas, vive no próprio engano quem achar que a viagem começou aí. Ela começou quando o convite foi aceito, quando as malas estavam sendo arrumadas, quando perspectivas e soluções estavam sendo associadas. A viagem começou no olhar de cada aluno participante, durante a aula que a antecedia: olhar dizendo Tu também vai, né?! A Peregrinação Xucuruana dava-se apenas continuidade.

NÃO PODIA DEIXAR DE ACONTECER

         Houve uma parada em Vitória para abastecimento e, mais adiante, em São Caetano, onde nos deparamos com o primeiro imprevisto – a quebra do ônibus –, que culminou num atraso divinamente proposital de três horas, para só chegarmos em Pesqueira às seis horas, como foi com os índios, combinado. Enquanto isso, a alegria reinava entre todos: sambas, frevos de rua, de bloco e canção eram cantados. A memória de Chico Science também se fez presente – músicas das raízes recifenses invadindo todos: argentinos, baiana, pernambucanos e anônimos de naturalidade, presentes. TODOS COMEÇARAM A CONVERGIR EM UM.

A ENTREGA

            Na Serra do Ororubá, entrada da 1ª aldeia, fomos recebidos(as) e, numa casa simples, mas sobretudo muito acolhedora, tomamos nosso “chá” da manhã. Pouco tempo depois, pudemos ouvir o Cacique Marquinho, filho do Cacique Xicão, que foi morto por questões de terras. Ouvirmos a seguir, sua história de luta pela retomada da posse das terras. Seguimos viagem, a pé, entre montes de área livre e de mata fechada,conhecendo adiante o túmulo do Cacique Xicão.
         Essa primeira caminhada nos veio cheia de expectativas. Intensificaram-se os laços de todos presentes. A conversa fluía no “meio do nada”e como que tomados pelo desejo de mais e melhor ver, parávamos para observar flores, bois, pitombas, jacas e pequenos plantios e fontes d’água; observávamos a paisagem e percebíamos o quanto é belo tudo que Deus criou. Nossas falas, embora diferentes, pareciam uma, em sintonia com o vento. Melodia sem cântico, prazerosa de ouvir, enriquecedora à alma e à mente. Éramos conhecimento em plena descoberta. O pisar no solo disforme e o passar dele, embora por momentos não percebamos, era motivo de superação para cada um dos presentes.

NOVAS SENSAÇÕES

         Já de volta ao ônibus, foi perceptível que a caminhada prima, fizera efeito: o tema das conversações era o Divino. Seguimos para Cimbres, cidadezinha simples e muito acolhedora, de povo amistoso, curioso, amigo. Cidadezinha de formosa igreja, carente de praça, cercada e guardada entre portões, cidadezinha da conquista, do medo e da revolta. Dos cabritos e cachorros a vagar nas ruas, das crianças a correr entre eles, do bom-dia, do boa-tarde, do boa-noite – coisas simples que dizemos mecanicamente na cidade grande, mas que lá são ditas com a alma – advindos da beleza montanhosa do lugar e da singularidade onde no simples sentimos a imponência.
         Lá, tomamos o energizante banho que tanto almejávamos. Banho frio, relembro, e sobretudo confesso aos que nessa linha chegaram. Mas, revigorante de forças esquecidas no caminho. “A casa é de vocês”- disse-nos uma senhora que nos recepcionou (eram três e de nome Maria) e, assim a chamamos. Em nossa conversas, dizíamos: “vou pra casa”. Provando quão acolhedor aquele lugar nos foi. Após o almoço, mais uma caminhada, dessa vez ao ritual religioso chamado Toré. Pequena caminhada em relação à anterior, mágica mais ainda, com variantes florais, pequenas casas isoladas (e povoadas) no monte, galhos a ferir-nos as pernas e folhas macias para de tal modo acariciá-las e reconfortar-nos da breve dor anterior.


INESQUECÍVEIS TORÉS

         Após vencermos os declives das trilhas, deparamo-nos com o ritual já em execução. Os índios, enfileirados, cantavam e dançavam para seus deuses. Convidaram-nos para acompanhá-los e, sem necessidade de um segundo convite, aprendemos rapidamente os refrões e os acompanhamos. Quem de nós observava percebeu que se contentaram demais com isso: a nossa aceitação, o nosso respeito a sua cultura religiosa. O momento importante, em que numerosas pessoas da tribo (e “pessoas brancas”, segundo o representante do terreiro) estavam presentes, tornou-se um momento também político, no qual a fusão religião-política-questões sociais foi bravamente explicada, denunciada e posta como um alerta ao povoado.
         De volta ao Centro de Cimbres, os estudantes, tomados pela vivacidade de tudo que viram e ouviram no ritual, cantavam (frevos, maracatus, cocos, loas indígenas aprendidas durante o ritual e sambas) e dançavam frente a “nossa casa”, chamando a atenção da comunidade e ganhando seu apreço. Na igreja, um casamento realizava-se. No salão próximo, o forró começava. Enfim, Cimbres foi só festa naquela noite. Declaramos ali, sem que nós mesmos percebêssemos, nosso amor àquela comunidade. A comunidade, por sua vez, percebeu. Por volta das dezenove horas, uma missa foi realizada em frente a “nossa casa” – alguns moradores vieram prestigiá-la.
         Na vigésima terceira hora do dia, quando apenas a meia-lua clareava os montes, alguns de nós acompanhamos o professor Artur Peregrino até a aldeia próxima, num terreiro onde já acontecia um outro Toré, num caminho difícil, devido apenas à escuridão. A noite fizera mais belo aquele evento. Uma grande fogueira clareava o centro da mata e velas acesas davam mais do que luzes ao local – davam-lhe formas. Seguindo o exemplo do professor, após o convite feito pelo líder para que todos se sentissem à vontade em participar, vários “brancos” entraram na roda, cantaram e dançaram. Os versos de um refrão foram estrondosamente ecoados mata adentro:

“EU QUERO A FORÇA DE TUPÃ,
EU QUERO VER TUPINAMBÁ.”


A CIDADE EM FESTA

            Os outros de nós que não foram a esse evento foram dormir a fim de se prepararem para o amanhã, ou foram ao forró, ou ficaram no meio das ruas, sentados em pedras, dados a conversar, ou ainda visitaram pessoas da comunidade e ficaram a conversar com elas. Independente da escolha, TODOS fizeram uma opção plausível. Todos aprenderam naquela noite e reconheceram seus limites de força. E embora o cansaço do dia se escondesse em nossos corpos, Cimbres nos convidava a ficar na rua. Cimbres retribuía o amor que lhe foi dedicado.

FLAGRANTES NO COTIDIANO

         O domingo chegara, e com ele o replanejamento do dia. Os que tarde acordaram perderam a sutileza do amanhecer em Cimbres: homens pastorando ovelhas, homens vendendo leite, um bêbado do forró bendizendo (Isso mesmo! Bendizendo!) a vida e a todos, as três Marias prontas novamente para nos ofertar seus préstimos, a Igreja de Nossa Senhora das Montanhas aberta, aguardando seus primeiros fiéis da missa dominical, a beleza ainda que mórbida do cemitério, a neblina nos picos dos montes vizinhos, os bons-dias de cada transeunte, o cheiro da lenha para a feitura dos cafés etc..
         Aos poucos, foram acordando e saboreando o café da manhã. Algumas pessoas do grupo aproveitaram para tomar um novo banho (a noite foi longa), outras caminharam pela cidade, buscando talvez crer que ela realmente existia, com aquela gente receptiva e a particularidade de “cidadezinha do interior” de anos atrás, outros ainda alegravam-se em conversas descontraídas em grupos que eram constantemente alterados, dada a unidade que nos tornamos.
         A pedido do professor, escrevemos nossas impressões a respeito do que já tínhamos visto, para serem entregues ao Cacique. Depois disso, fomos ao açude. Maravilhados, alguns se punham a pular n’água, a nadar, ou mesmo, simplesmente, sentar ou deitar-se no mato para observar tudo que os cercava. O TUDO e o TODOS foram perfeitamente equilibrados em todos os momentos da nossa viagem.

O MOMENTO MÁGICO

         De volta a “nossa casa”, cerca de 70 pessoas, entre índios e “brancos”, foram convidados a compartilhar do mesmo alimento, a homenagear e agradecer às “três Marias” pelo cuidado que recebemos, entoando um Pai-nosso, Cânticos Cristãos e indígenas (do Toré e Hino dos Xucurus). Inclusive, saliento aos que não foram e relembro aos que lá estiveram o quão lindo foi aquele momento, o quão importante diante da nossa história de reconhecimento do valor do indígena e da sua luta pelo que lhe é de direito natural. Permitam-me os que foram, confessar que choramos. Algo de divinamente belo acontecia naquela sala: no dia anterior mal cabiam 30 pessoas e nesse dia, cabiam cerca de 70. E o Cântico do Hino, pela sua letra invocando uma realidade de luta e resistência daquele povo, foi o ponto culminante de nossas emoções. Quem não chorou por fora, chorou por dentro. Algo de mágico tomou-nos. É dito.

VOLTEM LOGO!

         A volta pra casa, embora no esgotar das horas, foi saudosa, contudo alegre. Fomos convidados a voltar “por meses, por quinzena, por semana... venham quando quiser”, dizia-nos uma das Marias. E tantos outros também nos externavam isso.
O DESENLAÇE

         Dizia eu no começo que tudo começa com uma idéia, depois a proposta e, finalmente, o convite. Os xucurus já passaram as três fases necessárias à formação da prática por nós vivenciada. Já nos fizeram o convite. Para a engrenagem dessa máquina experimental maravilhosa continuar, respondemos que VOLTAREMOS. Através dessas impressões de viagem, socializamos esse convite para que outros sintam as emoções relatadas e outras que são indescritíveis com palavras.



SÓ VIVENCIANDO-AS PARA MELHOR COMPREENDÊ-LAS!


Rosália Cristina
Membro do Grupo do Caminho
Estudante do 1º período de letras da UNICAP
Maio/2005